domingo, 31 de agosto de 2014

a fragilidade da condição humana


Evolução

Fui rocha, em tempo, e fui no mundo antigo,
Tronco ou ramo de incógnita floresta ...
Onda espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo ...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo ...

Hoje sou homem - e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade ...

Interrogo o infinito e às vezes choro ...
Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

Antero de Quental

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

tempos de escuridão III

Às gerações futuras
                                                                                                  Salvador Dali
3

Vós que haveis de emergir das águas
Onde nos afogámos,
Lembrai-vos
Quando falardes das nossas fraquezas
Também dos tempos de escuridão
De que escapastes.

Nós que afinal marchámos, mudando mais de países do que de sapatos,
Através das guerras de classes, desesperados
Quando só havia injustiça e nenhuma indignação.

E, no entanto, sabemos bem:
Também o ódio contra a mesquinhez
Desfigura os traços,
Também a ira contra a injustiça
Torna a voz rouca. Ah, nós
Que queríamos preparar o solo para a simpatia
Não conseguimos ser simpáticos.
Vós, porém, quando chegar o tempo
Em que o Homem ajudar o outro Homem,
Lembrai-vos de nós
Com indulgência.

Bertolt Brecht (tradução GS)                                                                                                       







                                                                                                                                                                                                                                                    

terça-feira, 26 de agosto de 2014

tempos de escuridão II

Às gerações futuras

2
Vim para as cidades na época do caos
Quando dominava ali a fome.
Vim para o meio das pessoas na época da revolta
E insurgi-me junto com elas.
Assim passou o meu tempo,
Que me foi concedido nesta terra.

Comi a minha comida entre as batalhas
Deitei-me a dormir entre os assassinos
Vivi o amor de forma descuidada
E olhei a natureza sem paciência.
Assim passou o meu tempo,
Que me foi concedido nesta terra.

As estradas iam dar ao pântano no meu tempo.
As palavras que pronunciava denunciavam-me e entregavam-me ao carrasco.
Consegui apenas pouco. Mas os governantes
Ficavam mais seguros sem mim, isso era a minha esperança.
Assim passou o meu tempo,
Que me foi concedido nesta terra.

As forças eram poucas. O objectivo
Ficava a grande distância.
Era nitidamente visível, embora para mim
Mal alcançável.
Assim passou o meu tempo,
Que me foi concedido nesta terra.

Bertolt Brecht  (tradução GS)
(continua)

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

tempos de escuridão I

Às gerações futuras

1
Realmente vivo em tempos de escuridão!
A palavra ingénua é considerada insensata. Uma testa lisa
Indica insensibilidade. Aquele que se ri
Apenas ainda não recebeu
A terrível notícia.

Que tempos são estes, em que
Uma conversa sobre árvores é quase um crime,
Porque encerra um silêncio sobre muitos outros crimes!
Aquele, que ali atravessa calmamente a rua,
Já não estará acessível aos seus amigos
Que se encontram na miséria?

É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é só por acaso. Nada
Do que faço me dá o direito de me poder saciar.
Por acaso fui poupado. (Quando a minha sorte faltar
Estou perdido.)
Dizem-me: Come e bebe! Fica contente enquanto o tens!


Mas como posso comer e beber, quando
Estou a arrancar aquilo que como da boca de um faminto, e
O meu copo de água faz falta a alguém que está a morrer à sede?
E no entanto, como e bebo.

Também gostava de ser sábio.
Nos livros antigos está escrito o que é ser sábio:
Manter-se longe dos conflitos do mundo e passar
O curto tempo de vida sem medo.

Mas conseguir viver sem violência,
Pagar o mal com o bem
Não realizar os seus desejos, mas esquecê-los em benefício 
dos outros
É considerado sábio.                                                                (desenho: Käthe Kollwitz)
Tudo isso não consigo:
Realmente vivo em tempos de escuridão!
(continua)
                                                                                                             

 Bertolt Brecht (tradução GS)

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

o problema do mundo está em nós


"Para mim o problema do mundo é antes de mais um problema do eu, e a solução só pode ser alcançada partindo de dentro e depois... agindo exteriormente."
Paul Auster

Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do Sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali,
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez,

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Viver


A vida é um desafio constante - um conflito
entre aquilo que sonhamos e o que conseguimos alcançar
entre aquilo que esperamos e o que realizamos
entre aquilo que idealizamos e o que concretizamos.
Não é por isso que vou deixar de sonhar.

Que interessa a prudência e a idade?
Que importa o tempo a passar?
É preciso sempre mudar.

Não ficar estático e imóvel,
não se conformar com aparências,
seguir o sonho sem desanimar.

Pois apesar das angústias e tristezas súbitas,
dos obstáculos inesperados,
não há nada que me obrigue a parar!

GS

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

"Pensar é estar doente dos olhos" Alberto Caeiro


O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos?
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
saber ver sem estar a pensar,
saber ver quando se vê,
e nem pensar quando se vê,
nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!)
isso exige um estudo profundo,
uma aprendizagem de desaprender
e uma sequestração na liberdade daquele convento
de que os poetas dizem que as estrelas são freiras eternas
e as flores as penitentes convictas de um só dia,
mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
nem as flores senão flores,
sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.


Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, Poema XXIV

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

tristeza

A Pantera

O seu olhar tornou-se tão cansado com as grades a passar
que nada mais consegue reter.
Parece mil grades observar
e, para lá das mil grades, nada haver.

O andar de flexíveis e fortes passadas
gira num círculo minúsculo, onde esquecida,
numa dança de força à roda de visões paradas,
permanece uma enorme vontade adormecida.

Só às vezes, a cortina da pupila, silenciosamente,
se abre...então entra uma imagem,
percorre o silêncio dos membros tristemente
e morre quando chega ao coração, qual miragem.

Rainer Maria Rilke
(tradução - GS)




domingo, 3 de agosto de 2014

"Ser um é cadeia"



Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah! mas eu fugi,

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu não é ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Fernando Pessoa

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"teimosia"



Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

Miguel Torga, Desfecho